No comecinho dos anos 90, do século passado, eu fiquei próximo ao trabalho do artista plástico José Bechara.  Ele era conhecido na cena da arte carioca e eu nesse tempo fiquei amigo de um fotógrafo americano David Sprigle, da Filadélfia, que alugou uma parte no atelier do José Bechara. para fazer um outdoor studio. Muitas arvores, plantas e tudo mais. 

Era um casarão antigo na Lapa e algumas vezes que eu ia lá, eu o via colocando em varais, lonas de caminhão oxidadas carregadas de pigmento. Pesadas. E nas conversas com David, comentávamos que José era nosso “homem de lata” do filme “The Wizard of Oz”. Imaginávamos ele vestido com aquelas lonas. Yes, we trip a lot. 

Eu e David falávamos bastante sobre fotografia americana desde Ansel Adams a Robert Mapplethorpe e o meu preferido Gregg Toladan. Ás vezes  víamos José Bechara mover as lonas de lugar e as recortava, as jogava no chão, quase uma catarse. Sempre muito sério apesar de usar um short daqueles de pelada de praia bem usado. Nós brincávamos que existia um muro entre nós, “o muro da concentração”, tal a dedicação do artista quando ocupava aquele espaço.

De lá para cá vou as suas exposições. Vejo os trabalhos e amo às formas esculturais e as telas que me parecem paradigmas desenhados com linhas e as oxidações. Aliás, que palavra sexy, oxidação, óxidos muito da pele, dos tons. Sinto falta daquele casarão.

José Bechara

Hoje conversamos sobre o agora. Esse momento meio estapafúrdio, meio anunciado e como José Bechara está nisso tudo.

1) Como está sua rotina na quarentena?  Ateliê? Live? 

Estranha. Na prática, fico entre as atividades domésticas e o ateliê. Estou produzindo em condições diferentes: mais lentamente, e num tipo de relação mais pura com trabalho já que não há agenda a ser cumprida. E sem poder comprar materiais, o que é um problema interessante de enfrentar. O tempo segue estranho porque nesses dias olho as horas desinteressadamente, domingos são iguais a quintas-feiras. E fico observando as coisas por mais tempo, tento ajudar quem precisa de ajuda, leio, faço inventários mentais. Está tudo bem esquisito, parece que estou num daqueles jogos de tabuleiro e tirei uma carta que diz “volte 20 casas” e as casas à frente estão rasuradas. Sim, tenho umas lives marcadas. 

2) O que você vai fazer primeiro quando a quarentena começar a abrir?

 Abrir a porta devagar, e olhar com cuidado pro lado de fora pra saber se podemos mesmo sair. Depois, sei lá, ir dançar forró com Dedina, minha mulher, em alguma cidade pequena do nordeste ao som de sanfonas. Não sei. Esse momento de abertura vai levar tempo ainda e acho que primeiramente tenho que chegar lá.

 

José Bechara – Sem título, da série Criaturas do dia e da noite, 2018_Foto Mario Grisolli

3) Você é mais uma pessoa de ambientes fechados ou abertos? 

Dos dois. Mas o que mais incomoda é o estado das coisas. Sempre me senti razoavelmente livre, nunca tive chefes a não ser os compromissos que estabeleço. As limitações são claras e são muitas e aí fico perambulando parado procurando sentidos entre razão e espírito. De todo modo nesses instantes mais aprisionadores sou alertado pela lembrança das obrigações de muitos profissionais que não têm tempo pra reclamações, os da área de saúde, bombeiros, transportadores etc, e aí me dou conta de que não tenho direito a questionamentos vinculados ao humor.  

4) Qual é a sua opinião sobre como a pandemia irá afetar a maneira de ver arte e de comprar? Porque na internet você pode comprar e ver mais ver ao vivo é diferente? 

Bem, inegavelmente afeta os modos nesse momento. Compras online, visitas online já têm sido feitas e seguem sendo cada vez mais numerosas. Temos agora uma série de feiras de arte que estão sendo organizadas na web e vemos também inúmeras ações de galerias e museus no ambiente eletrônico, e em breve deveremos ter notícias dos resultados. Agora, acho que passado o tempo da pandemia as visitas físicas e compras presenciais voltarão a acontecer, até porque gostamos de nos encontrar, de celebrar. 

José Bechara – Sem título, 2017 acrílica, oxidação de emulsão cúprica sobre tela, 25 x 20 x 10 cm (cadaeach). Foto Mario Grisolli

5) Você acredita em uma recessão artística? Uma crise de talentos? 

Crise de talento não, porque artista é artista em qualquer situação, se não for assim, não é artista. Mas como a paisagem vai ficar hostil, naturalmente a gente terá mais dificuldades. Mas as produções podem mudar um pouco em épocas de menos dinheiro circulando.Tenho preocupação com museus e centros de arte, que sempre dependeram de doações pra sua manutenção e agenda expositiva. As economias mundiais acabavam de se levantar dos danos de 2008, e agora vão encarar isso que vem por aí, que representa um desafio muito maior do que em 2008. 

6) Quais eram seus planos de expor seus trabalhos em um futuro próximo? Isso mudou ? 

Sim, cancelei quatro exposições individuais e propus esperar outras datas. A primeira exposição seria no dia 18 de março, na Galeria Marilia Razuk, São Paulo, com o título “Modos de condenar certezas”. Duas outras exposições na Espanha: Palma de Maiorca em maio e Madri em setembro, ambas em minha galeria naquele país: Galeria Xavior Fiol. Por último, no fim do ano, na galeria Matias Brotas, em Vitória. Esta segue marcada mas não estou seguro que deva acontecer neste ano. E também uma coletiva em Portugal, no Centro de Artes de Sines. Por mim, deixo tudo para o segundo semestre de 2021. Também interrompi uma agenda de lançamentos de meu último livro publicado, pela editora Barléu, no fim do ano passado.

7) Você tem filhas. o que tem conversado com elas? 

Tenho duas filhas e um filho, todos adultos. A mais nova mora conosco. Eu estava na Espanha com a mais nova em meados de fevereiro, e desde lá já falávamos todos sobre o que estava por vir. No começo, conversávamos sobre as mudanças que viriam, sobre as respostas da natureza, sobre a falência dos modos contemporâneos de vida, especialmente nas cidades. Falávamos da surpresa do evento e da potência dos danos nas pessoas, nas famílias, nas populações. Falávamos das grandes falhas e diferenças que nosso modelo social contém. Com o correr dos dias isso mudou um pouco, passamos a uma mirada mais pragmática, falamos dos cuidados diários com a doença nesse momento e de como podemos ajudar ao redor. Conversamos sobre os futuros possíveis e nesse ponto não acredito em novo normal. A humanidade, como me lembrou um dos filhos, já passou por experiências mais devastadoras e não mudou. Claro que alguns indivíduos farão mudanças, alguns grupos, mas não acredito que a humanidade mude

 

 

 

José Bechara Foto: Dedina Bernadelli